Atenção: Esse texto não é uma crítica de cinema (não defenderei uma ideia, não na forma crítica) e nem uma análise fílmica. Seria insanidade classificá-lo dessa forma!
Trata-se da perspectiva de um estudante.
Chi-Raq, filme de 2015, disponível na Amazon Prime, tem como principal tema as consequências que a disputa entre organizações criminosas trás para a comunidade negra. A partir da morte de Patty, uma criança inocente vítima dessa disputa e filha de Irene (Jennifer Hudson), um grupo de mulheres, lideradas por Lysistrata (Teyonah Parris), namorada de Chi-Raq (Nick Cannon, interpretando o líder de uma das organizações), busca interromper essa onda de violência implantando uma greve de sexo. Isso como ponto de partida (a greve), o objetivo maior é despertar em todos os moradores daquele local (e além) a ideia de que as mortes, a violência, os tiros, a insegurança e o medo precisam parar.
Por que o nome Chiraq? É a Soma de Chicago + Iraque, formando Chi-Raq. O apelido, que veio por conta do número de assassinatos e tiroteios ocorridos nessa cidade, é sentencial: Chicago é Iraque, a violência está no patamar de uma guerra.
Spike Lee é um diretor que sempre terá algo a dizer, segundo as palavras do também diretor Scorsese: “Quando assisto a um filme de qualquer um desses cineastas (Paul Thomas Anderson ou Claire Denis ou Spike Lee ou Ari Aster ou Kathryn Bigelow ou Wes Anderson), sei que vou ver algo absolutamente novo e ser levado a áreas de experiência inesperadas e talvez até inomináveis. Meu sentido do que é possível ao contar histórias com imagens e sons em movimento será expandido”¹.
Existem elementos do pior e do melhor Spike Lee nesse filme. O melhor Lee torna a obra um entretenimento divertido, com críticas políticas e sociais certeiras, que lançam ao espectador insegurança, medo, tristeza, mas também esperança e vontade de lutar; tais sentimentos são vivenciados pelos personagens. Do lado pior, temos o reforço de estereótipos que o longa, em variados momentos, tentava justamente combater. São eles: Tratamento de personagens femininas e a valorização da luta conduzida pelas mulheres.
Começaremos pelo melhor…
Spike Lee também é diretor de vídeo clipes, tem em sua lista músicas como Hip Hop Hooray, Fight The Power, They Don’t Care About Us, entre outras. Esse formato de audiovisual, onde o som (em geral) dita o ritmo do vídeo, permite uma construção que desafia as convenções da montagem cinematográfica.
Com toda essa bagagem, que vem desde que acompanhava sua mãe em filmes musicais e seu pai em shows de jazz, Lee consegue criar espetáculos, trabalhar as emoções e expectativas do espectador para, entre outras coisas, acentuar toda a energia do show de abertura em Chi-Raq e marginalizar o contexto violento de Chicago. O trabalho de direção de atores merece destaque, assim como a coreografia somada aos cortes, tudo absolutamente encaminhado com o objetivo de entreter o público para o grande “punch” que virá a seguir. A saber: O tiroteio desencadeado pela rivalidade das organizações. Essa surpresa, causada justamente pela imersão do espectador no show, quebra totalmente a atmosfera que foi construído anteriormente, retornando (e reforçando) ao clima de insegurança apresentada na abertura do filme.
Coreografia, com movimentos cadenciados muito ensaiados dos atores, somado aos cortes e a própria imersão que a música cria nesse ambiente todo, ajudou a construir a quebra do clima que dá início ao conflito do filme.
Pela direção de arte e direção de fotografia, o filme mostra que a guerra é uma estupidez. Assim como mostra que existem mais semelhanças do que diferenças entre as organizações, ou melhor, entre as pessoas que as precedem. Exemplo de quando Lysistrata inicia o recrutamento indo até a casa “inimiga” e todas lembram das perdas de vidas próximas, arrefecendo a discussão que acontecia. Assim como as casas onde vivem os líderes das organizações, através da planta baixa, percebemos as similaridades.
Ainda na questão da estupidez dos conflitos, do pouco caso com a vida humana e das semelhanças entre as pessoas da comunidade, os dois atiradores rivais do show que abre o filme ficam com dificuldades de locomoção, tinham uma missão, eram “úteis” e agora não. Peças descartáveis de uma engrenagem. Se reconhecem na dor somente depois. As cores das organizações, somada a maneira de como os membros usam as roupas ou acessórios para ilustrar a qual pertencem, remetem também a conhecida rivalidade entre Crips e Bloods, com o ajuste dentro da própria linguagem do cinema para aludir à morte, seja no roxo ou no laranja.
Primeiro (01) temos o encerramento de uma discussão que iria ficar mais acalorada devido a todas serem vítimas da violência e se reconhecerem nisso. Por fim (02 e 03), temos o tema da semelhança ressaltado no layout das casas dos líderes das organizações.
A violência que Lysistrata, Irene, Padre Mike (John Cusack), Miss Helen (Angela Bassett) e outras pessoas querem combater, afugenta pessoas e instala o medo onde existia interação e sociabilidade. Neste espaço, dominado pelo já citado medo e por quem se aproveita dele, os moradores ou estão em casa ou viraram lembranças tristes da violência. Em um dado momento, Pr. Mike menciona que sirenes e tiros são a trilha sonora da comunidade e fitas amarelas da polícia, ursinhos, camisetas e balões são os memoriais nacionais dos bairros. Esse vácuo de sociabilidade faz com que empresas de seguros de vida busquem o lucro com a situação (vendendo uma “solução” que mira no efeito e não na causa).
Nos dois planos mais abertos (01 e 05), a constatação de que Miss Helen está presa a situação imposta pela violência. Em 02 ela atende com a maior simpatia o vendedor de seguros. Porém, ao constatar do que se trata o assunto (03), sua reação é enérgica, expulsando-o do local. O enquadramento ainda tem o cuidado de deixar claro que o vendedor (que não por acaso é negro) também está preso naquela dinâmica social. Quem ganha com isso?
Prova da excelência na decupagem é a cena que ocorre na igreja, vários planos, de diversos ângulos, lembrando vídeo clipe, sem “regra” dos 180° e com muita clareza do que acontecia no ambiente.
Ele simplesmente irá colocar a câmera em todos os lugares possíveis! Começamos com um raccord de movimento, que passa da parte externa da igreja (01) para a parte interna (02). Em seguida já identificamos o que está acontecendo (03 e 04). Nos cortes, a câmera em movimento ou o movimento da atuação pedindo a passagem para o próximo plano.
Não estão na ordem do filme, mas perceba que a câmera foi exigida de todas as formas possíveis e em nenhum momento a experiência espacial foi prejudicada.
Na mensagem dessa cena, o ponto alto político do filme. Se eu caguetar (entregar quem atirou, atira e instala o caos no local), estou ferrado, virei alvo! Porém, um assassino à solta é um perigo geral, todos são alvos. Definitivamente não é uma conversa fácil.
Em um ambiente fechado, um sentimento que sufoca e pede para sair e inundar a comunidade. Na montagem, corta do caixão de Patty para Chi-Raq (01 a 03 nas fotos abaixo), segue cortando da última frase do membro de camiseta branca, sugerindo uma postura diferente diante dos protestos e da violência que aquele grupo e suas ações geram + reação (insatisfeita) de Chi-Raq para um grafite em um muro/outdoor com um dedo “do meio” segurando ou parando uma bala (04 e 05). Depois abre o plano e é uma mensagem de not bullets ou sem balas. Através da montagem, saímos de uma reação negativa (Chi-Raq quer seguir a vida na criminalidade), simbolizada pela junção de planos, para, através de outro plano, voltarmos a mensagem principal do filme (06).
Além de mostrar o poder da montagem, como explicado acima, a junção dos planos 01, 02 e o corte para 03, dá uma dica (pista) para o expectador a respeito da resolução de um dos conflitos do filme (recompensa). Isso já havia ocorrido na cena em que Lysistrata visita Miss Helen (criação de padrões).
Importante citar o elenco, que homenageia uma das vertentes de atuação do teatro (de onde vem a comédia que inspira o filme), através do “tom acima” em algumas cenas, além das rimas faladas. Na questão das rimas, tem uma sutileza de questionamento, pois é uma valorização da cultura negra em cima de uma peça que veio da Grécia, país tido como berço da filosofia. Entretanto, pessoas como o professor Renato Nogueira (entre diversas outras), estudam as raízes da filosofia no continente africano, de onde também vem os Griots (contadores de história), cujo Rap (que você pode associar no filme, dada a forma como os personagens declaram o texto), herdou características. Adicionando aqui a imagem do Jesus Negro, a pergunta que o filme permite deixar é quem está adaptando de quem?
Mas e o pior Lee?
Antes, rapidamente, vamos abordar a peça Lysistrata (de Aristófanes, que Lee adaptou). É uma comédia, como foi observado antes. Tive a oportunidade de encená-la em 2013. É importante deixar claro o texto político que ela possui. A questão da greve é impedir que os filhos dessas mulheres, que depois serão soldados, sejam jogados em uma guerra sem sentido, já com uma sentença de morte. Mad Max – Estrada da Fúria, carrega essa temática, além de ser igualmente de 2015. Não é fácil transitar por esses assuntos e sair ileso do risco de desequilibrar a questão Sexo vs Protesto. Em Chi-Raq, todas as piadas pertencem ao núcleo da protagonista, além disso, os enquadramentos (e o texto) tratam as mulheres de forma objetificada.
Citando Isabel Wittmann:
(…) as mulheres literalmente colocam em si mesmas os cintos de castidade e se apresentam como objetos do desejo masculino, quase sempre alheias aos seus próprios. A agência das personagens (duplamente escrita por homens, na fonte original e na adaptação) existe, mas ela é limitada à negação do que é apresentado como um direito masculino. Além disso, a greve de sexo só funcionaria em um contexto heteronormativo e o único momento em que isso é contestado, é em tom de piada².
Já Matheus Mans, via Filmelier³, cita que o filme se tornou datado antes mesmo de chegar às telonas, já que a luta feminista também se volta contra a sexualização dos corpos.
Repare na seriedade dos outros núcleos (de Irene e da própria jornada de ChiRaq). Spike Lee opta por concentrar as piadas apenas quando se tem como tema a própria greve. Não que algumas não funcionem (comigo), exemplo da dança solitária no clube, somado ao sempre presente “shhhhiiiiiiit”, me fizeram rir. A repetição do padrão, entretanto, a meu ver, acabou pesando no final.
É uma “guerra” de forma e estilo. Encontramos no filme aspectos formais que buscam enaltecer a luta das mulheres, assim como encontramos aspectos de estilo (e de forma), exemplo dos enquadramentos, que objetificam as mesmas mulheres. Isso é um ruído na mensagem. Qual a mensagem que querem passar? Eis o conflito de Spike Lee que coloquei no título desse texto.